A confiança no parceiro de dança é fundamental para que ela aconteça e os bailarinos deslizem, como se tivessem, de fato, a plena consciência de onde saíram e para onde vão. No tango, o entrelaçar das pernas, a posição do ombro tocado pela parceira e o olhar íntimo passam um sentimento de torpor ao espectador, você faz parte da dança e do espetáculo. Em O Último Tango, documentário musical de German Kral, um dos casais mais importantes do tango argentino contam a sua história de amor e ódio entre si e com a dança, nos colocando em um lugar privilegiado da plateia.
A beleza de Maria Nieves Rego é percebida no auge de seus 81 anos, o seu olhar é direto e sincero. Juan Carlos Copes – o criador do estilo copes de tango – mantém o olhar sedutor e sério aos 84 anos, e com Maria, durante quase meio século, foi o representante do tango da argentina em peças da Broadway e apresentações pelo mundo inteiro. Ao se conhecerem na adolescência, nos clubes de dança da capital portenha, a sinergia entre os corpos era inevitável, e como diz Juan sobre a primeira dança com Maria: “havia encontrado o meu stradivarius”. Contando a história do casal, O Último Tango embala no ritmo do 2×4 para mostrar que a dança tipicamente portenha é feita de suor e paixão.
Trabalhando de forma semelhante ao ótimo Pina, de Wim Wenders, o drama aqui é construído através do ritmo das pernas, da desenvoltura dos corpos e também pela construção externa de uma companhia de dança que tenta fazer uma possível reconstrução da história da dupla de tangueiros. Enquanto Maria Nieves os guia pelos clubes e ruas de Buenos Aires, o grupo de dançarinos vai buscando uma forma de incorporar os sentimentos vividos nessas quase cinco décadas e como influenciaram a dança de Maria e Juan. E fazem isso muito bem, preenchendo com lirismo e vivacidade as memórias entre fotos, vídeos de época e improviso.
Maria Nieves é uma ótima protagonista, com um gênio forte, percebe-se a força de suas escolhas durante essas décadas, sempre focada na dança apesar dos lamentos do passado. Já Juan representa o papel do homem condutor da dança, aquele que quando inconformado com a parceira, que desliza sem precisar muito de sua direção, resolve ir em busca de algo que continue seguindo seus passos. Mas as idas e vindas da relação amorosa não permitiriam que o relacionamento profissional com o tango ficasse de lado. E é essa história de insistência, como uma milonga que dura até o chão desgastar com os pés dançantes, que se descortina ao espectador, uma viva paixão que permitia que continuassem a se encarar e dançando. Como uma boa história de amor, Maria e Juan sabiam não serem eternos apesar da dança e O Último Tango constrói de forma belíssima esse desencontrar de corpos apesar da permanência da dança, seguindo até o último passo.
Maria e Copes, junto com nomes como Astor Piazzolla (uma pena, não citado no filme), foram responsáveis por uma retomada do tango, em uma tentativa de transformá-lo no que o jazz era para os americanos. Com certeza conseguiram, não apenas o espetáculo Tango Argentino foi um sucesso na Broadway nos anos 80, como ainda hoje o tango é culturalmente louvado e serve como base para novas criações e experimentações. O Último Tango é um filme sobre amor pela dança, sobre uma paixão ardente que segue o ritmo 2×4 até o bandoneonista parar de tocar.