Um dos grandes épicos do cinema dos anos 1960, Doutor Jivago combina a grandiosidade dos eventos históricos com a intimidade de um drama pessoal. Baseado na obra de Boris Pasternak, o filme narra a trajetória do médico e poeta Iúri Jivago (Omar Sharif), um homem idealista dividido entre duas mulheres — a esposa Tonya (Geraldine Chaplin) e a apaixonante Lara (Julie Christie) — e entre os ideais revolucionários e as tragédias do mundo real. É um romance arrebatador inserido no turbilhão da Revolução Russa, dirigido com esmero por David Lean.
A força do filme está na sua capacidade de envolver o espectador pela beleza visual e pela atmosfera lírica, mesmo que o roteiro nem sempre se sustente com a mesma solidez. Lean recria uma Rússia dilacerada pelo conflito com um detalhismo impressionante, ainda que as filmagens tenham ocorrido majoritariamente fora do país, em paisagens espanholas e canadenses. O que se vê em cena, no entanto, é uma paisagem russa idealizada e congelada no tempo — um cenário onde o gelo e a paixão convivem em intensidade.
A história, adaptada por Robert Bolt, simplifica o conteúdo político do romance original e transforma a revolução em pano de fundo para a jornada emocional de Jivago. Ainda que personagens como o general interpretado por Tom Courtenay representem a frieza da nova ordem, o filme opta por exaltar os sentimentos pessoais, o amor e a dor como forças maiores do que o curso da História. Há nisso uma escolha deliberada, que prioriza a sensibilidade ao invés da análise ideológica. Doutor Jivago não quer explicar a revolução — quer fazer sentir o que ela arranca dos indivíduos.
Omar Sharif, com seu olhar melancólico e postura introspectiva, oferece um Jivago contemplativo, quase etéreo, cuja passividade diante dos acontecimentos contrasta com o dinamismo de personagens como Komarovsky (Rod Steiger), o manipulador cínico que rouba várias cenas. Steiger entrega um desempenho memorável como o homem que primeiro corrompe Lara e depois se revela um inesperado protetor. É ele quem oferece algumas das falas mais cortantes do filme e que mais expõem o abismo entre o pragmatismo e o idealismo.
Julie Christie interpreta Lara como uma figura trágica, cuja beleza e coragem hipnotizam tanto o protagonista quanto o público. Sua trajetória, marcada por abusos e renúncias, é também um reflexo da Rússia partida entre velhos valores e novas imposições. Já Geraldine Chaplin confere a Tonya uma dignidade serena, quase inacreditável em certos momentos — especialmente na maneira como lida com o romance extraconjugal do marido. Suas atitudes beiram o sacrifício silencioso, contribuindo para o tom romântico e doloroso da narrativa.
A música de Maurice Jarre, especialmente o famoso “Tema de Lara”, ecoa por todo o filme, reforçando sua atmosfera melodramática. E se há quem critique o exagero emocional de Doutor Jivago, é preciso reconhecer que esse é justamente o seu motor. O longa aposta no melodrama em grande escala, com suas lágrimas, trincheiras, trens e amores impossíveis, e seduz pelo cuidado estético e pela emoção quase operística de sua execução.
Ao final, Doutor Jivago pode até parecer inflado demais, sentimental demais, longo demais — mas há nele um poder de encantamento que permanece até hoje. É um cinema que valoriza o espetáculo e a emoção, mesmo à custa da precisão narrativa. Um filme para se ver com o coração aberto, permitindo-se mergulhar naquela Rússia de gelo e paixão, onde a vida insiste em florescer apesar da História.